quinta-feira, 24 de julho de 2008

Ausências 1







Eyes of China Blue

"São cinco da tarde e eu a rilhar o tempo.
A tua imagem chega-me, cristalina,
como telegrama de última hora.
Há uma consolação quase primitiva na memória:
a pouca luz que afugentava o medo,
o teu sorriso sempre regra,
o mapa que se chamava teu corpo
por onde me passeava sem receio e sem destino,
sem remorso,
a tua respiração que me embalava
rumo a poemas e a sítios que não sei.

Entrelaço os dedos mirrados de serem veias, na ausência
da tua carne que a minha levou. Nas rugas do lençol
imagino os contornos do teu corpo.
Já nada sei do meu: dois seios que se aninham,
pequenos e entorpecidos,
parece que dormem, duas coxas solitárias
que se desprendem de mim, dois joelhos que se afastam,
em vão,
e me fazem vale com fome.

Há um silêncio que é novo e que arranha, ensurdecedor,
tudo geme tudo grita, longe as ondas
em filme mudo
que ouvia no teu peito deitada
ou a geografia sonora dos sentidos
quando te desejava.
Trago na pele um travo amargo a lixa.

Já não tenho a lágrima, não sei se secou.
Estará em águas de outras fontes
que não aqui, talvez no fundo dos teus olhos
ou perdida pelos montes, em serras
matos ou lagoas, talvez nas costas das folhas
das árvores que contigo ergui.

Perdi o andar, falta-me o teu corpo a dançar
ao lado do meu, nossos corpos eram corpo vai
corpo vem como a maré, tropeço no vazio do espaço
que ainda te sabe ser, e a mão tomba
magra e vazia,
como apêndice extraordinário que não reconheço.
Sinto que estou no Inverno e tenho frio.

...

Assim são os dias, tamanhos de te procurar
por entre os objectos que me dizem que não estás.
Grandes são as noites, de respirações lentas
e horas que são planas, onde permaneço em palavras
que não digo, a roçarem-me em ferida o céu da boca.
Tudo em ti eram pontos cardeais, tu, minha rosa
dos ventos a que me dei.

Na imagem do espelho falta-me o teu cabelo
e não sei de quem é este rosto que vejo
e que me dizem ser meu.
Já não sei onde estou. Já não sei o que pensar.
Já não sei quem sou.
Fumo um cigarro e reflicto.
Queres que te conte um segredo?
Na tua ausência sobras tu.
Falto eu."

Eyes of China Blue


Eu te amo, Chico Buarque

Sem comentários:

Enviar um comentário