terça-feira, 18 de agosto de 2009

A memória da memória

"Guardamos loiça, roupa, livros, comida. Cadernos antigos, cartas de amor. Guardamos fios. Tecidos. Trapos sem cor. Brinquedos. Pregos. Sapatos velhos. Uns mais que outros, a tudo damos valor e guardamos sempre qualquer coisa. Vivemos assim, rodeados de grandes malas invisíveis, cheias de pedaços de nós e das coisas da vida, como se estivessemos na eminência de partir para algum lugar.
Guardamos misérias, despedidas. Segredos. Tristezas, desgostos, atrofios. Incertezas. Crentes ou ateus, tudo guardamos. Religiosamente.
Mas nascemos nús de tudo e morremos nús de nós. Religiosamente também, sobraremos nas mãos de outros.
Porque em vida tentamos guardar a vida, só os outros nos podem guardar a morte e o que fomos. Quando muito, alguém nos guardará com entusiasmo por sermos unicamente uma fotografia antiga. Mas já ninguém nos saberá o nome. Ou que cores. Ou quantos amores. Ou a cor do teu cabelo quando a luz entrava pela janela, pela manhã. Tu, adormecida, e aquela madeixa vermelha espalhada pelo meu peito. Aquela madeixa vermelha por onde fui seguindo a minha vida, agarrado a ti, com medo de cair. Dizias-me que eu era o teu mundo e eu sorria, sem nada dizer. Eras tão linda! Eras tu o meu mundo, digo-to agora. E agora que não estás aqui, sei-te de cor. Cada vírgula do teu olhar, cada pedaço do teu sorriso, cada fio da tua madeixa vermelha.

Foi em 1942, amor. Nas únicas férias que tivemos. Momentos antes de nos tirarem esta fotografia, tinhas-me dito baixinho que eras feliz."
Eyes of China Blue

fotos de desconhecidos de um álbum de fotografias
achado


Naked as we came, Iron and Wine

6 comentários:

  1. Oh Zu, que fixe que foi esta tua descoberta. Fiquei tão contente! O album tem fotografias fantasticas. O fixe de não conhecermos ninguem é podermos analizar a fotografia pela fotografia, embora gostasse de saber se alguem ainda é vivo e o que se passou com o album? Mas isto torna a tua descoberta ainda mais fixe, a incognita, o misterio, as históias que podemos imaginar com aquelas imagens...
    Oh bebe, que saudades...
    Gosto da maneira como apresentaste as fotografias, gosto muito, gosto-te muito...
    RRRRRrrr, love you...

    ResponderEliminar
  2. Só agora ouvi a musica que tinhas posto. Iron and Wine tambem foi uma grande descoberta :)
    Essa coisa de guardarmos tudo e mais alguma coisa não é materialismo,não é saudosismo,é como coleccionar selos ou calendários... gostava de poder guardar tudo o que me dizes,gostava de poder guardar tudo o que os teus e os meus olhos vêem...
    olha, pronto, rrrrr, gostei...

    ResponderEliminar
  3. Não foi fixe a minha descoberta; fixe foi o álbum não ter ficado à chuva. Tenho fé que vá encontrar a pessoa a quem ele pertence. Continuo sem perceber o que fazia ali, em cima de um muro público, parcialmente molhado. Ocorreu-me que possa ser fruto de furto e até me admira não ter ido parar ao lixo. Mas o mais provável, é que alguém de família o tenha pedido emprestado (um álbum daqueles não sai de casa assim, sem mais nem menos...) e o tenha pousado para fazer algo, tenha apanhado o autocarro a correr,por exemplo, e só se tenha apercebido depois. Eu tê-lo-ia deixado ali se não estivesse a chover, porque no lugar da pessoa voltaria atrás. Talvez a pessoa tenha mesmo voltado atrás, mas com a chuvada que caíu a seguir, não ia ficar com grande coisa. Não só espero encontrar o dono(a) do álbum, como espero encontrar a pessoa certa. Imagino que, no caso de alguém o ter pedido emprestado, seja um pouco difícil explicar ao dono o que aconteceu. Talvez ainda nem sequer tenha dito nada...

    Quanto ao post em si, ainda bem que o comentaste, porque percebi que estou no caminho errado ao querer que as pessoas percebam do que estou a falar, na realidade.
    Este post não é sobre as coisas que guardamos, senão teria um outro título, relacionado com colecções ou despensas, p. ex., é sobre a memória 'escondida' agarrada à memória principal, qualquer coisa de subliminar, percebes?, por isso o intitulei de 'A memória da memória'.
    Um homem, viúvo, sentado a olhar um álbum de fotografias e a recordar a mulher falecida, tece considerações sobre como, em vida, ela tudo guardou e partiu, sem nada levar do que guardou, sobrando nos joelhos dele, na forma de uma fotografia e memórias agarradas a esta. Foi erro meu não tornar isto mais claro, mas fi-lo propositadamente para que quem lesse o descobrisse por si.
    Ao olhar essas fotografias e ao recordar-se dos momentos 'físicos' e lugares, ele continua a divagar e começa a recordar algo bem mais importante. 'Dizias-me que eu era o teu mundo e eu sorria, sem nada dizer.' Tarde demais diz-lho 'Eras tu o meu mundo, digo-to agora.'
    Escrevi o post do fim para o princípio, porque o que escrevi primeiro foi o último parágrafo. Em 1942, ela disse-lhe baixinho que era feliz e só agora, que ela partiu, é que ele se dá conta da enorme importância daquilo que ouviu.
    Era essa a minha ideia, falar das coisas que são realmente importantes por às vezes ser tarde demais para lhes reagirmos.

    Fico contente que queiras guardar tudo aquio que te digo, muito embora ache que isso, sendo condição necessária, não é condição suficiente para se ouvir alguém, que achas?

    Os 'Iron and Wine' foste tu que os descobriste e eu agradeço-te tê-los partilhado comigo, porque me enchem de paz!
    Acredito que conseguirei devolver este álbum aos joelhos aos quais pertence...

    ResponderEliminar
  4. Não vou rezar ao teu Deus para que isso aconteça mas Deus queira que isso se realize. Gostei de ter o previlegio de folhear aquelas folhas, não porque o dono me tenha deixado mas porque tu o encontraste. Gostei de poder ver aqueles momentos que tão importantes devem ter sido a quem os viveu e tal como tu acho que pertencem aos joelhos certos.

    Guardar tudo o que se diz não é condição que garanta que alguem ouviu mas pode ajudar.

    Desculpa se interpretei mal o que querias dizer, acontece-me frequentemente e não é só contigo. Tenho essa noção desde que num teste de portugues no 10º ou 11º ano, que eu achava ter corrido mesmo muito bem, tive negativa à conta do Camões.

    E a descoberta dos Iron & Wine embora tenha sido eu a mostrar-te foi fruto de uma radio que criei, no pandora, com o teu nome e algumas bandas que tu gostas. Logo a descoberta também é tua.

    RRRRRrrr

    ResponderEliminar
  5. Eu sei...


    Não tens que pedir desculpa; eu é que te peço desculpa porque não é clara a minha intenção. Mas um texto pode ser assim como um quadro, não? Cada um interpreta como quiser, consoante vivências e afins... Além do mais eu também falo disso, do facto de tudo guardarmos, compulsivamente (uns mais despreendidos do que outros, obviamente).
    Só te respondi porque achei que, tendo tu gostado tanto!!! do álbum, ias gostar de saber em que é que eu estava a pensar exactamente...

    Beijo.

    ResponderEliminar
  6. E gostei sim, gostei muito. Texto lindo.

    Beijos

    ResponderEliminar