"Tinhas 28 anos e um sorriso estrondoso. Eu tinha perdido 3 empregos no espaço de 2 meses e a vontade de sorrir era pouca.
Tinhas saído de casa para comprar tabaco. Eu tinha começado a mudar toda a minha casa, a arrastar móveis e a alterar divisões para mais um dos meus finais de ciclo. Voltaste para casa com o teu maço de tabaco. E comigo. Deixei as minhas mudanças em suspenso, chamei-te Mr. Smile e amei-te.
Passaram agora 30 anos desde a última vez que te vi. Ainda me lembro do teu sorriso e da linha curva e bondosa das tuas pestanas.
Vivo sozinha no alto de um outeiro e tenho um carvalho por companhia. É debaixo da sua sombra que estou agora. São seis e meia da tarde de um dia de Verão. Fim de Verão diria a fazer lembrar Outono. A luz está doce e morna e traz-me memórias à pele e aos sentidos. Se ainda fores vivo, aposto que te lembras o quanto eu amava esta luz, o quanto amávamos esta luz. Se é que te lembras de mim ainda.
Hoje, a senhora da segurança social não veio. Tanto melhor. Ela fala demasiado e fá-lo por mim supondo, erradamente, que me fará feliz assim. Nunca consegui abandonar certos hábitos de boa educação e por isso nada lhe digo. Deixo-a falar até deixar de a ouvir. Mas não hoje. Hoje estou feliz porque há silêncio. E neste meu silêncio das coisas, hoje, só há espaço para o roçar gentil das folhas deste meu carvalho, como se fossem amantes cansados que ainda trocam carícias. E o som das asas de meia dúzia de aves que pressentem já o aproximar da noite. Parece-me tudo muito bonito. O silêncio, a luz, as giestas que se balançam devagarinho, sem pressa, e os tufos de tojo que parecem bombons mal embrulhados, espalhados pela paisagem.
Já não vejo bem, sabes. Mas consigo imaginar pelo calor e pelo cheiro que há no ar, as cores que lhe vêm agarradas. Depois é só puxar pela memória que treinei ao longo dos anos de juventude com este propósito confesso, e aí sim, vejo tudo com extrema nitidez. É só sobrepôr imagens e é então com clareza que vejo tudo o que me rodeia. Devolvo-me assim os olhos que já não tenho.
Está um fim de tarde lindo. Está um dia lindo para morrer. Oxalá aconteça assim, com esta luz e ao fim da tarde de um dia de Verão a fazer lembrar Outono. Podia estar aqui sentada a olhar o horizonte que se me apresenta e o horizonte da memória de todas as coisas que vivi. Com as folhas deste meu carvalho a tigirem-se lentamente de veludo em vermelhos e cores de whisky que me lembram todos os sorrisos, conversas, olhares e amores. Oxalá a senhora da segurança social não possa vir nesse dia, que tenha qualquer coisa de importante para fazer e me possa deixar morrer em paz, sem ter que a ouvir no meu último momento. Quero ouvir o roçar gentil das folhas deste meu carvalho, como se fossem amantes cansados que ainda trocam carícias. Está um dia lindo para morrer. Podias estar aqui. Em silêncio.
Vamos viver para uma ilha grega?, perguntavas com esse sorriso fantástico que nunca te apercebeste ter. Claro...,dizia-te eu, com um sorriso que era só tristeza e do qual nunca te apercebeste, continuando a brincar a esse teu faz de conta que te fazia feliz. Nunca te quis dizer que o imaginar coisas bonitas, às vezes, nos rasga o peito. Podemos ter um burro?, continuavas. Claro, respondia-te, sempre sorrindo. Que nome lhe vamos dar?, perguntavas, como se o nome do nosso burro fosse a coisa mais importante deste mundo. António... um burro chamado António, dizia-te. O teu olhar brilhava e eras feliz naquele momento.
Raramente me lembro de ti. Para não ter que te esquecer. Mas lembro-me sempre de uma história que escrevi :Era uma vez um burro chamado António que vivia numa ilha grega..."
Eyes of China Blue
João e Maria, Chico Buarque
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