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Tinhas saído de casa para comprar tabaco. Eu tinha começado a mudar toda a minha casa, a arrastar móveis e a alterar divisões para mais um dos meus finais de ciclo. Voltaste para casa com o teu maço de tabaco. E comigo. Deixei as minhas mudanças em suspenso, chamei-te Mr. Smile e amei-te.
Passaram agora 30 anos desde a última vez que te vi. Ainda me lembro do teu sorriso e da linha curva e bondosa das tuas pestanas.
Vivo sozinha no alto de um outeiro e tenho um carvalho por companhia. É debaixo da sua sombra que estou agora. São seis e meia da tarde de um dia de Verão. Fim de Verão diria a fazer lembrar Outono. A luz está doce e morna e traz-me memórias à pele e aos sentidos. Se ainda fores vivo, aposto que te lembras o quanto eu amava esta luz, o quanto amávamos esta luz. Se é que te lembras de mim ainda.
Hoje, a senhora da segurança social não veio. Tanto melhor. Ela fala demasiado e fá-lo por mim supondo, erradamente, que me fará feliz assim. Nunca consegui abandonar certos hábitos de boa educação e por isso nada lhe digo. Deixo-a falar até deixar de a ouvir. Mas não hoje. Hoje estou feliz porque há silêncio. E neste meu silêncio das coisas, hoje, só há espaço para o roçar gentil das folhas deste meu carvalho, como se fossem amantes cansados que ainda trocam carícias. E o som das
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Já não vejo bem, sabes. Mas consigo imaginar pelo calor e pelo cheiro que há no ar, as cores que lhe vêm agarradas. Depois é só puxar pela memória que treinei ao longo dos anos de juventude com este propósito confesso, e aí sim, vejo tudo com extrema nitidez. É só sobrepôr imagens e é então com clareza que vejo tudo o que me rodeia. Devolvo-me assim os olhos que já não tenho.
Está um fim de tarde lindo. Está um dia lindo para morrer. Oxalá aconteça assim, com esta luz e ao fim da tarde de um dia de Verão a fazer lembrar Outono. Podia estar aqui sentada a olhar o horizonte que se me apresenta e o horizonte da memória de todas as coisas que vivi. Com as folhas deste meu carvalho a tigirem-se lentamente de veludo em vermelhos e cores de whisky que
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Vamos viver para uma ilha grega?, perguntavas com esse sorriso fantástico que nunca te apercebeste ter. Claro...,dizia-te eu, com um sorriso que era só tristeza e do qual nunca te apercebeste, continuando a brincar a esse teu faz de conta que te fazia feliz. Nunca te quis dizer que o imaginar coisas bonitas, às vezes, nos rasga o peito. Podemos ter um burro?, continuavas. Claro, respondia-te, sempre sorrindo. Que nome lhe vamos dar?, perguntavas, como se o nome do nosso burro fosse a coisa mais importante deste mundo. António... um burro chamado António, dizia-te. O teu olhar brilhava e eras feliz naquele momento.
Raramente me lembro de ti. Para não ter que te esquecer. Mas lembro-me sempre de uma história que escrevi :Era uma vez um burro chamado António que vivia numa ilha grega..."
Eyes of China Blue
João e Maria, Chico Buarque
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