terça-feira, 15 de julho de 2008

5. Jogadores

1,4- Susanna Erkheikki; 2-Hannes Caspar; 3- Holy Sloot


"Quando tinha 8 anos, li 'O Jogador' de Dostoievski e não percebi nadinha mas lembro-me de ter gostado. Pensei nesse livro algumas vezes ao longo da minha vida mas para além do título, não sei sequer de que se trata. Deste livro ficou-me só a memória do que não vinha lá escrito e de ter ficado muito atenta sempre que se falava dos males do jogo e desgraças consequentes.

Cheguei há pouco tempo à conclusão de que jogadores não são aqueles que apostam uns vinténs, o salário todo, a casa, o carro, a mulher. O verdadeiro jogador arrisca tudo porque nada tem para trocar nesse jogo senão ele próprio. Esse jogo é o jogo da vida e é a ele próprio que se coloca em cima da mesa, por não ter mais nada. Haverá quem pense que há um total desprendimento nesta atitude, posto que quem nada tem, nada terá a perder. Pergunto-me se será assim. Desconfio que não. Se a única coisa que se tem é o próprio, então será valiosíssima por ser a única e será tudo o que nunca se poderá perder. Porque se arrisca então dessa forma? Há quem faça escalada, rapel, body jumping. Há quem esqueça o passado e o presente e mude de vida como quem muda de camisa ou deita fora uma panela velha. Será a procura interior a mesma? Será a mesma, a adrenalina? Acto de despreendimento ou acto de coragem, quando se joga a própria vida?

O verdadeiro jogador arrisca-se também a perder-se a si próprio, a perder todas as noções de ética, moral, respeito e palavra, nesse jogo imenso de sobrevivência que é a vida, a perder até mesmo a sua personalidade e o seu jeito de ser como se fosse agora um outro personagem com uma outra vida. Mas muitos deles conseguem chegar ao fim inalterados e inalteráveis, doces e iluminados, um pouco mais sábios porque se mantiveram fiéis a si próprios. Quererão concientemente jogar esse jogo? O que os impele? O que os fascina? Quando e como termina? Que jogo é este a que alguns de nós se entregam apaixonadamente com ar despreendido de quem não quer saber, e repetidamente ao longo da vida vão mudando a sua história? Será a necessidade de viver várias vidas ou só simplesmente a necessidade? Despreendimento fruto da necessidade ou não, será um enorme acto de coragem.

O meu avô fugiu de um pai duro, sózinho, Galiza acima, escondendo-se dos carabineiros que atiravam a matar, Espanha abaixo comendo sabe-se lá Deus o quê, para apanhar um barco que o levasse para o Brasil. Onze anos de idade era tudo o que tinha. Quando foi apanhado como clandestino, olhou o comandante nos olhos e disse 'Atire-me borda fora, tanto se me importa.' Será que não se importava mesmo? Será que teve noção de um tal empreendimento do alto do seu corpito de pouco mais de um metro? Gosto de pensar que sim, que era essa a sua raça. Repetiu a brincadeira quando voltou, passadas quase duas décadas. Viveu tudo o que tinha para viver e morreu aos 40, quando outro tanto poderia ter feito, ou talvez já não houvesse mais nada para ser feito porque o sonho já tinha sido sonhado e tinha-se cumprido. Surpreendentemente abominava o jogo, que considerava próprio dos fracos.

Há também quem faça isto sem sair do mesmo sítio. É o chamado jogador discreto, jogador aparentemente passivo. E é claro, sangue é sangue. Curioso como abomino o jogo..."
Eyes of China Blue



L'Enfant de la Haute Mer, Siggraph

Sem comentários:

Enviar um comentário