sábado, 28 de junho de 2008

4. Profetas

"Os profetas de hoje trocaram as areias do deserto pelas grandes metrópoles internacionais. Já não se vestem de panos rudimentares, optaram por modelos de Giogio Armani coçados que alguém deitou fora. Também já não se alimentam de gafanhotos ou cactos, preferem vasculhar e conseguir comida nos jacós do lixo de alguma Macdonalds ou de um dos hipermercados mais visitados. As palavras, essas, são as mesmas. E nunca, nunca são ouvidos, muito embora as pessoas parem e façam de conta que ouvem, quanto mais não seja para dizerem que o mundo está perdido com gente deste género à solta, e assim se enganam, e assim se iludem, porque a vida de cada um é sempre ridícula dependendo do olho maldoso de quem vê e, especialmente, dependendo da língua peçonhenta de quem fala. É claro que isto em nada os perturba e há já muito que falar se tornou mais importante do que ser ouvido, até porque 'a corrida não é para os ágeis, nem a batalha para os bravos, nem o pão para os prudentes, nem a riqueza para os inteligentes, nem o favor para os sábios: todos estão à mercê das circunstâncias e da sorte' ( Eclesiastes 9-11) e, mais demora menos demora, calha a vez a toda a gente de ser insultada ou humilhada.
1-Arbestos; 2-Lydia Corneli

Mas há um outro tipo de profetas, menos melodramáticos e mais eruditos, gente comum que leva uma vida simples e para quem não é de todo importante falar. Não dão nas vistas e escolhem por opção consciente o silêncio, por acreditarem que não se atiram verdades à cara de quem não as procura, e só depois de muita insistência é que vão dando a sua opinião. Vêm o que está para acontecer, sabem-no por artes de magia que os ultrapassa, propõem-se a falar de quando em vez ... mas o resultado é o mesmo: nunca, nunca são ouvidos. Estes profetas não têm a sorte dos primeiros, cuja aparente loucura funciona perfeitamente e que faz com que sejam deixados em paz.

Não, estes últimos vêem-se envolvidos numa trama de opiniões a seu respeito, coisa que já sabiam de antemão por já o terem previsto, é claro, e mesmo sabendo que 'não se deve resistir perante os insolentes para que não armem ciladas às tuas palavras' (Eclesiástico 8,14), não se aguentam e dizem o que acham (só depois de terem sido provocados até à exaustão, verdade seja dita). Nunca conseguem e jamais conseguirão perceber porque é que o seu silêncio lhes trouxe tanta amargura e fel (pois é o silêncio que impera na sua conduta); esquecem-se de que o que lhes trouxe tudo isto foi uma ou duas frases que disseram tiradas a saca-rolhas depois de terem sido picados pela enésima vez, com esse fim. Esquecem-se que 'o homem de bom senso guarda as suas palavras' (Eclesiástico 1,30) e que 'há uma estupidez que é apenas falta de sabedoria' (Eclesiástico 25,17). E que quem pede a opinião, a maior parte das vezes, não a quer; quer é outra coisa. Sobretudo, penso que se esquecem que devem ser 'simples como as pombas e prudentes como as serpentes' (Mateus 10,16).

O que estes profetas querem é viver em paz e vivem, de facto, em paz dentro de si. O mundo exterior é que não lhes facilita em nada o seu objectivo. Assim quando dão conta, toda a gente tem uma opinião a seu respeito; muito embora estas pessoas não os conheçam de lado algum, nem nunca fizeram um esforço para os conhecer. Analisam as suas atitudes, (que não sabem quais são por nunca estarem presentes) e fazem questão de as divulgar nas mesas de café para quem as quiser ouvir. Quando dão conta, já toda a gente acha qualquer coisa acerca deles e chega mesmo a acontecer serem abordados por estranhos que fazem questão de lhes dizer o que lhes apetece. Coitados, nem na sua magnífica e desejada solidão são deixados sózinhos. Mas como sabem que 'há uma malícia hábil que é execrável' (Eclesiástico 25,17) e que 'é pelo fogo que se experimentam o ouro e a prata' (Eclesiástico 2,5), lá vão tendo paciência até ao limite e do qual se livram adoptando tácticas de Fénix . Talvez um dia percebam que é exactamente isso que perturba os outros: a paz e a solidão em que vivem sem o menor trauma ou frustração ( se é que já não o sabem). Sim, porque se se dessem ao trabalho de analisar a vida daqueles que falam, veriam que são pessoas que não fazem nada sem estarem acompanhadas, pessoas super activas porque tudo é melhor do que estarem em casa sózinhas, que a sua vida não vale mesmo nada se não fossem as amizades que acham terem e das quais se julgam donos e senhores. A maldade apodera-se destas pessoas em tempos de desespero, não há nada a fazer; ' o que está curvado não se pode endireitar e o que falta não se pode calcular' (Eclesiástico 1,15) - sinceramente, há que ter pena.

Apesar de tudo isto, estes profetas dos dias de hoje passam pela vida a ser genuína e verdadeiramente amados, por poucos, por nada, sem lhes ser pedido nada em troca, só por serem quem são, e não como os outros que são procurados porque é chato irem ao cinema sózinhos, ou porque pode dar jeito tê-los como amigos para pedir um favor ou outro, ou ainda porque o domingo é um dia insuportável para alguns por sentirem a solidão como gel peganhento. E diga-se de passagem, estas pessoas iludem-se ao achar que têm muitos amigos,amigos que afinal são amigos porque o problema que têm é a solidão que os incomoda de morte, com pruridos e comichões incluídas; comichões na alma. Mas como este é o grande problema dos amigos e também o deles próprios, convivem em harmonia. Serão verdadeiramente amados? Claro que não. E sabem-no. Se o fossem não haveria motivos para invejas, maldades e malícias, ainda que discretas, ou para classificarem os sentimentos das relações dos outros por ordem decrescente de chegada; ou motivos para egoísmos cancerígenos que preferem fazer de conta que não vêem por se terem em grande conta. Isto pode ser hilariante e um bom tema de análise que deve fazer as delícias de qualquer psiquiatra...

Que acontecerá a estes profetas no futuro? Tudo o que acontece já o sabiam e o que acontecerá já o sabem. Desistirão e passarão a recitar versículos da Bíblia no meio da rua vestindo um qualquer modelo de Gianfranco Ferré (em segunda mão, claro)? Ou quiça se especializarão num determinado Livro do Antigo Testamento usando uma determinada marca de roupa usada (sim, os que se vestem bem conseguiram ocupar posições no governo ou seitas religiosas)?

E o que acontecerá aos maldosos que não conseguindo obter satisfação alguma da miséria de vida que têm, precisam da vida dos outros? Se 'o que existe já existiu, o que existirá já existe, e Deus procura o que desapareceu' (Eclesiastes 3,15), virá o Próprio directamente do Antigo Testamento, de espada em riste reclamando o seu 'olho por olho, dente por dente' (Levítico 24,20)?
Nã..., também não me parece. Afinal, nós somos todos ateus. Nós temos a Lei de Murphy.

O futuro o dirá, já que Deus fala pouco. Ele lá sabe porquê."
Eyes of China Blue

Let Me Live, Queen

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