terça-feira, 1 de abril de 2008

Os ventos do sul, segundo Mr. Smile



















"Recordo-me de ter pensado que nesse fim de Primavera,


os Khamsin do sul tardavam a chegar. Os ventos eram ainda


fracos, as dunas pouco ou nada se moviam. Todas as manhãs,


da minha
tenda, a paisagem parecia a mesma. Perguntei-me


se saberia ao
certo o ano, ou o mês ou o dia. O ano eu já não


sabia. No
deserto não se mede o tempo, só as estrelas, a luz,


as estações lentas e o vento. O mês? Fim de Primavera, o céu


nunca
mentia. Nem o céu, nem a luz que cobria as dunas de


ternura ao fim da tarde. O
dia? Era o sétimo dia de muitos


sétimos dias.


Nessa madrugada, reuni o meu rebanho e conduzi-o quase


até às
montanhas de Djebel. O Sinai à minha frente. As


tábuas da lei do livro velho. O silêncio. O fogo da sarça


ardente. O fogo dentro de mim. O silêncio.


É verdade que nunca me perguntei qual o caminho
do


vento. Mas nesse fim de tarde, de regresso à minha
tenda,


o vento encontrou-me. Os khamsins chegaram sem sequer


se fazer anunciar e eu... eu devia ter temido a tempestade.


O silêncio transformou-se em solidão, perdi-me do meu


rebanho, a terra parecia ter tudo engolido, excepto eu.


Não sei como caminhei, nem em que direcção, nem o


caminho que percorri. Se é que é possível haver um


caminho em pleno deserto, no meio da tempestade.


Voltei a mim envolta num manto de linho fino retorcido,


púrpura, debruado a madrepérola, escarlate e carmesim.


O meu corpo repousando em peles de carneiro, tingidas de


vermelho. Uma pomba pousada numa mesa de alabastro,


enfeitada a oiro, perguntava-se sobre mim. Ramos de


figueira espalhados pelo chão. Taças de açucenas. Taças de


bananas, pêssegos e romãs. O cheiro a lírios e a mirra.


E os teus olhos. Sorrias. Lembrava-me de ti. Algures no


meio da tempestade, havia uma mão estendida. Da mão não


sei a forma, mas da linha do teu olhar...eram teus os olhos


que eu vi.


Contaste-me mais tarde que não sabias porque tinhas


decidido sair naquela noite. Tinhas caminhado até ao limite


de Farafrah e tinhas avistado ao longe a tempestade. Ficaste


ali à espera, a vê-la avançar. Avançava a tempestade e


avançava eu para ti, sem saberes. Tentei levantar-me e


partir mas tu não deixaste. Em vez disso, contaste-me


histórias de Kéfren e de Al Kahirah. Falaste-me de Karnak


e Alexandria, coisas que eu não conhecia, como poderia?


Ali estava eu, rodeada de cores e sabedoria. À minha volta


cresciam figos nas figueiras e as laranjeiras exalavam seus


perfumes. Palmeiras, acácias, salgueiros. Cachos de hena e


nardos, aloés e azeitonas, canela, cinamomo e acafrão...


Madrugávamos pelas vinhas, em silêncio. Alimentávas-me


de tâmaras, bebíamos vinho perfumado e todas as noites


protegias do frio da noite o meu corpo, com o teu corpo.


Tive medo. Tive tanto medo. Dos teus gestos sempre mansos,


do teu olhar amável e sereno pousado sobre o meu. Eu


própria desconfiada, atenta, animal. Quis fugir. Saudades


das minhas dunas, do grande Erg e da Hamada onde aprendi


a amar o silêncio, daquela solidão doce onde me sentia


protegida. Saudades do cheiro do deserto, cheiro a corpo


cansado. Do grito do chacal ou do leopardo sempre atento.


Saudades dos montes onde habitam os leões e rondam as


panteras. Já me tinha esquecido como era ver outro rosto e a


ouvir outra voz que não a minha. Tentei, em vão,procurar as


minhas vestes negras, toda eu era cor. Não te consegui


explicar o preto das minhas vestes. Não me consegui explicar


o púrpura violeta e o carmesim de que me vestiste.


Fiquei contigo durante a tempestade mas as coisas de que


falavas eu não as pude entender e ficámos à distância que


estou da água. Os nossos corpos não nos pertenciam perto e


com o tempo deixei de te ouvir. O olhar fixo na memória do


deserto. A alma em metamorfoses de leopardo e de chacal.


No meu silêncio, não me ouviste uivar. No meu silêncio,


não te apercebeste que me tinha enchido do som do vento


e não soubeste que te era como a areia, que não se pode ter


nem se pode contar. Imóvel e silenciosa, tinha-me


transformado em tempestade.


Um dia decidi que estava na hora de partir. Levantei-me


uma manhã, em silêncio e devagar, como antílope escapando


a predador. Despi as roupas de cores, dobrei-as com carinho


e deixei que as minhas vestes pretas que tinha encontrado


escondidas, me abraçassem de novo. Dormias. Coloquei tudo


nos seus lugares para não notares a minha falta ou que algum


dia passei por aqui. Tudo deixei no mesmo sítio aquando da


minha chegada. Nunca ninguém me viu nem nunca ninguém


sequer suspeitou que fiquei ali contigo. Tinhas-me guardado


só para ti. Até a pomba branca continuava pousada na mesa


de alabastro. Sorri. Estavas lindo, dormias. Chorei.


Cedi ao deserto. A água está longe. E tu também. Dei à cor


verde o teu nome, a mim chamei-me distante. Mas levei


comigo o teu olhar.


Encontrar-te-ei um dia, onde não se mede o tempo."
Eyes of China Blue

Wild as the wind, David Bowie

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