"Recordo-me de ter pensado que nesse fim de Primavera, os Khamsin do sul tardavam a chegar. Os ventos eram ainda fracos, as dunas pouco ou nada se moviam. Todas as manhãs, da minha tenda, a paisagem parecia a mesma. Perguntei-me se saberia ao certo o ano, ou o mês ou o dia. O ano eu já não sabia. No deserto não se mede o tempo, só as estrelas, a luz, as estações lentas e o vento. O mês? Fim de Primavera, o céu nunca mentia. Nem o céu, nem a luz que cobria as dunas de ternura ao fim da tarde. O dia? Era o sétimo dia de muitos sétimos dias. Nessa madrugada, reuni o meu rebanho e conduzi-o quase até às montanhas de Djebel. O Sinai à minha frente. As tábuas da lei do livro velho. O silêncio. O fogo da sarça ardente. O fogo dentro de mim. O silêncio. É verdade que nunca me perguntei qual o caminho do vento. Mas nesse fim de tarde, de regresso à minha tenda, o vento encontrou-me. Os khamsins chegaram sem sequer se fazer anunciar e eu... eu devia ter temido a tempestade. O silêncio transformou-se em solidão, perdi-me do meu rebanho, a terra parecia ter tudo engolido, excepto eu. Não sei como caminhei, nem em que direcção, nem o caminho que percorri. Se é que é possível haver um caminho em pleno deserto, no meio da tempestade. Voltei a mim envolta num manto de linho fino retorcido, púrpura, debruado a madrepérola, escarlate e carmesim. O meu corpo repousando em peles de carneiro, tingidas de vermelho. Uma pomba pousada numa mesa de alabastro, enfeitada a oiro, perguntava-se sobre mim. Ramos de figueira espalhados pelo chão. Taças de açucenas. Taças de bananas, pêssegos e romãs. O cheiro a lírios e a mirra. E os teus olhos. Sorrias. Lembrava-me de ti. Algures no meio da tempestade, havia uma mão estendida. Da mão não sei a forma, mas da linha do teu olhar...eram teus os olhos que eu vi. Contaste-me mais tarde que não sabias porque tinhas decidido sair naquela noite. Tinhas caminhado até ao limite de Farafrah e tinhas avistado ao longe a tempestade. Ficaste ali à espera, a vê-la avançar. Avançava a tempestade e avançava eu para ti, sem saberes. Tentei levantar-me e partir mas tu não deixaste. Em vez disso, contaste-me histórias de Kéfren e de Al Kahirah. Falaste-me de Karnak e Alexandria, coisas que eu não conhecia, como poderia? Ali estava eu, rodeada de cores e sabedoria. À minha volta cresciam figos nas figueiras e as laranjeiras exalavam seus perfumes. Palmeiras, acácias, salgueiros. Cachos de hena e nardos, aloés e azeitonas, canela, cinamomo e acafrão... Madrugávamos pelas vinhas, em silêncio. Alimentávas-me de tâmaras, bebíamos vinho perfumado e todas as noites protegias do frio da noite o meu corpo, com o teu corpo. Tive medo. Tive tanto medo. Dos teus gestos sempre mansos, do teu olhar amável e sereno pousado sobre o meu. Eu própria desconfiada, atenta, animal. Quis fugir. Saudades das minhas dunas, do grande Erg e da Hamada onde aprendi a amar o silêncio, daquela solidão doce onde me sentia protegida. Saudades do cheiro do deserto, cheiro a corpo cansado. Do grito do chacal ou do leopardo sempre atento. Saudades dos montes onde habitam os leões e rondam as panteras. Já me tinha esquecido como era ver outro rosto e a ouvir outra voz que não a minha. Tentei, em vão,procurar as minhas vestes negras, toda eu era cor. Não te consegui explicar o preto das minhas vestes. Não me consegui explicar o púrpura violeta e o carmesim de que me vestiste. Fiquei contigo durante a tempestade mas as coisas de que falavas eu não as pude entender e ficámos à distância que estou da água. Os nossos corpos não nos pertenciam perto e com o tempo deixei de te ouvir. O olhar fixo na memória do deserto. A alma em metamorfoses de leopardo e de chacal. No meu silêncio, não me ouviste uivar. No meu silêncio, não te apercebeste que me tinha enchido do som do vento e não soubeste que te era como a areia, que não se pode ter nem se pode contar. Imóvel e silenciosa, tinha-me transformado em tempestade. Um dia decidi que estava na hora de partir. Levantei-me uma manhã, em silêncio e devagar, como antílope escapando a predador. Despi as roupas de cores, dobrei-as com carinho e deixei que as minhas vestes pretas que tinha encontrado escondidas, me abraçassem de novo. Dormias. Coloquei tudo nos seus lugares para não notares a minha falta ou que algum dia passei por aqui. Tudo deixei no mesmo sítio aquando da minha chegada. Nunca ninguém me viu nem nunca ninguém sequer suspeitou que fiquei ali contigo. Tinhas-me guardado só para ti. Até a pomba branca continuava pousada na mesa de alabastro. Sorri. Estavas lindo, dormias. Chorei. Cedi ao deserto. A água está longe. E tu também. Dei à cor verde o teu nome, a mim chamei-me distante. Mas levei comigo o teu olhar. Encontrar-te-ei um dia, onde não se mede o tempo." Eyes of China Blue Wild as the wind, David Bowie |
terça-feira, 1 de abril de 2008
Os ventos do sul, segundo Mr. Smile
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