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sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Anemias ou A Vitória da Persistência

Eyes of China Blue em PhotoFunia

"Sou do tempo em que se lia O Meu Pé de Laranja Lima como leitura obrigatória nas escolas preparatórias, e nos atiravam com Os Esteiros ou O Diário de Anne Frank ainda mal tínhamos caído do colo de toda a gente.

Todo o meu corpo cresceu desde então, mas a minha alma continua do tamanho dos meus olhos quando contemplavam altares em dia de casamento ou tigelas de marmelada em alto de frigoríficos. Ou árvores escondidas por vidros embaciados, da cevada acabada de fazer em manhãs de Inverno. Ou muito simplesmente, berlindes às cores espreitando ao fundo das mãos dos putos. Mãos. As mãos do meu pai. As mãos do meu avô. A minha imagem reflectida ao espelho - brincos de princesa rubros e generosos enfeitando-me as orelhas e o negro do cabelo - descascando papel de chumbo em louceiros seculares, de tanta a inocência.
Fui observando a vida como se os meus olhos fossem feitos da paciência do açúcar em banho quente de água, assim, como se fossem rebuçados da Régua, embrulhados por Deus em papel vegetal, e desembrulhados por segundos e terceiros para serem maiores o ritual e o espanto. Isso e a lei da gravidade aplicada à água, à minha água, à água dos meus olhos.
Eu, aquela que gosta de saber e de não saber o porquê de todas as coisas, perpetuando fés e mistérios ou fugindo da inevitabilidade fatal do pecado original, nunca soube o que eram frieiras. Ainda hoje assaltam-me essa e outras dúvidas, de igual importância. Por exemplo, não sei se recomeço a vida, continuamente, ou se na verdade me engano e o que vivo são retrospectivas, umas reais outras imaginárias, pelos cantos dos cafés, mesas de esplanada, paragens de autocarro ou filas de supermercado, fazendo questão de as espalhar pelos cantos desta cidade, meu único roteiro de alegrias e de dores. Enquanto me convenço e até mesmo acredito que renasço mais uma vez. E uma outra vez ainda.

Mas não importa. Bem vistas as coisas, a única certeza que tenho, é que há em mim um cansaço que não me deixa morrer.

E isso basta-me para ser feliz."
Eyes of China Blue


Desert, Emilie Simon

sábado, 14 de fevereiro de 2009

As asas dos gestos e de outros bolores


Eyes of China Blue a partir de Abhijeet Shinde, Sanjay Khochare, A. Marques e Cirujano

"Já não sei viver entre os outros. Nem que eu fosse o mais eloquente dos oradores, continuaria a emudecer face à grosseria alheia. Não se pode pertencer a uma civilização para a qual não se tem argumentos."

Luísa Monteiro, O Sorriso de Percival


There is no evil angel but love, adme

terça-feira, 16 de setembro de 2008

3. Os animais dos outros


Thor Mentor
"(...) E aprendi com meu cão a sentir as madrugadas
e ensinei-lhe a procurar nossos olhos na água
como se colhêssemos silêncios nas florestas."

Victor Matos e Sá


Billy the Kid, Claire Diterzi

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

2. Os sentimentos dos outros


David Hockney
"Sento-me em frente de A Bigger Splash, a cópia,
e demoro-me a vê-la. É uma composição simples.
Uma casa, duas palmeiras, uma cadeira de lona e,
em primeiro plano, uma prancha e a piscina.
Alguém acabou de saltar, mas não se vê corpo
nenhum, apenas a água em desordem. O silêncio,
um súbito splash, e o silêncio de novo.
Eu ainda não mergulhei de vez, penso, estou
suspenso no ar. Aquele é o meu retrato amanhã.
Um pouco de água em convulsão e o peso puro
do mistério no instante seguinte."
José Eduardo Agualusa, Catálogo de Sombras


City of Angels, Brad Silberling

quarta-feira, 23 de julho de 2008

7. Os indefesos









Patric Shaw
"Os indefesos são uma raça à parte. Criaturas que se acham pequenas ou nem tanto, quando na verdade nada sabem acerca do seu tamanho. Difícil arriscar a análise ou tecer considerações, senão vejamos... vou tentar.

Os indefesos são bons por natureza mas péssimos no que concerne à concretização correcta da sua personalidade quando aplicada aos restantes humanos do planeta. Dizem sim ao que não querem e não ao que gostariam de fazer, movimentando-se consoante o tipo de pessoas presente e/ou contextos. Não percebo se por educação ou medo, se pela necessidade de serem estimados, ou muito simplesmente por prezarem em demasia a opinião dos outros. Vivem horrorizados que deixem de ser gostados, e acreditam piamente que se escolherem bem as palavras que agradem ao seu semelhante estarão a ser bons cristãos e a ser gente. Acaba por ser triste. Mas como eu disse, são bons por natureza, o problema é andarem sempre a resvalar na falta de sinceridade sem serem falsos - alguns de nós gostam dos outros sinceros doa a quem doer, independentemente do peso das palavras; deveria ser assim na minha opinião, dentro dos limites de certas regras básicas de 'higiene' social e respeito pela vida alheia.

Nunca somos inocentes nem quando nascemos, usamos vendas durante muito tempo ou não queremos ver, mas a percepção da maldade à nossa volta está lá, ou não tivéssemos nós instintos porque somos animais. Não se poderia passar de outra forma com estes desgraçados que tal como nós, de inocentes não têm nada. A sua atitude, ou aliás, a ausência desta, é uma escolha bem pensada; não é falta de vivência nem imaturidade. Vêm tudo muito bem mas fazem de conta que não; têm tempo de sobra para grandes reflexões por serem normalmente calados e, sem aparente reacção, esperam pacientemente que o tempo tudo leve sem terem que mostrar quem são. O que interessa é agradar a gregos e a troianos, e que a vida corra em estado de graça.

O que pensam? O que querem? O que sentem?, não o sabemos. Nem eles próprios o saberão, por estarem demasiado ocupados a tentar fazer o que acham ser melhor para não ferir susceptibilidades e não desiludir alguém. Deixam-nos maravilhados com a sua calma e bondade, são incapazes de se defenderem ou de dizerem o que acham e o que sentem ou de fazer mal a quem quer que seja propositadamente, encantam-nos com o mistério em que se envolvem sem se revelarem - tudo isto faz parte do charme com que se 'vestem'. Com eles não só é preciso ter faro como olho de águia: altamente adaptáveis e pródigos em argumentos sabiamente rudimentares de modo a parecerem-nos verdadeiros, deixam-nos na dúvida. E todos nós gostamos de acreditar no melhor que há no Homem.

Infelizmente, têm um igual potencial para causar o caos e à medida que o tempo passa vão deixando pontas soltas aqui e ali, como rastos de luz, começando a desapontar os outros ou a dar-lhes as certezas do que tanto duvidaram. Estão tramados. Porventura maus alunos a História, ficaram sem perceber muito bem o que aconteceu em Tróia e desconhecem a definição da palavra cilada. Não conseguem assimilar que dualidade não é só luta interior dentro de nós, mas também aquilo que nós somos versus aquilo que mostramos aos outros sermos. Custa-lhes a acreditar que chegou a hora da verdade e de optar, e que os outros se cansam desse jogo do gato e do rato que deixa de ter piada quando a vida por si só já pesa tanto. Consideram a escolha de dizerem o que querem, como querem, quando querem e quem são afinal, um ataque pessoal à sua privacidade. Chegando a adultos maduros sofrem horrores mais do que o que deviam se não tivessem sido parvos e são frequentemente abandonados. Só anos mais tarde perceberão o que foram perdendo ao longo da vida. Talvez no dia em que já não forem mais confrontados com o mundo mas consigo mesmos, num pensamento qualquer do género 'Onde foi que me perdi dentro de mim?'.

A estas pessoas falta-lhes sempre qualquer coisa que é directamente proporcional à capacidade enorme que têm, de poderem ser algo grande.


Mas não adianta pressioná-los. É amá-los, defende-los ou deixá-los. Talvez com o tempo o que têm de melhor, e que é muito, venha à tona da água como casta de bom azeite. Chamem-lhe o que quiserem, fracos ou emocionalmente descompesados. A mim rebentam-me com os nervos e enchem-me de adrenalina e ternura. Porque gosto destas criaturas? Porque são anjos que precisam de anjos da guarda especializados. Porque são verdadeiros artistas. Com eles tudo pode acontecer: têm nas mãos a oportunidade de se transformar em alguém que valha a pena, tantas vezes quantas as probabilidades num lançamento de dados. Porque é essa a sua essência, oscilando entre a dualidade, a adaptabilidade e o não saberem quem são, podem ser quem decidirem ser: Anjos, Proscritos, Caçadores, Profetas, Jogadores, Guerreiros ou manterem-se Indefesos eternamente se conseguirem e assim quiserem. São estes os Sete tipos de pessoas, na minha opinião, divinas, que acredito valer a pena conhecer na vida. Perdoem-me as outras que não me sabem a nada.


Considero mesmo que os indecisos são o Prelúdio de algo grandioso. São o Início da Criação. E como eu disse lá atrás, todos nós gostamos de acreditar no melhor que há no Homem."
Eyes of China Blue

Cello Suite #1, Prelúdio de Bach, Michael Hedges

terça-feira, 22 de julho de 2008

6. Guerreiros

"Há homens que lutam um dia, e são bons; há outros que lutam um ano, e são melhores; há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons; porém há os que lutam toda a vida. Estes são os imprescindíveis."
Bertold Brecht














"Os guerreiros não me assustam, antes pelo contrário, tenho-os em grande estima. As pessoas frias e calculistas são mesquinhas; os guerreiros, cerebrais e racionais quando a vida assim lho exige, trazem consigo uma ternura surpreendente, uma ternura de fogo, quente e frio, sem palavras ou sorrisos. O tipo de ternura que dificilmente encontramos nas pessoas ternas que têm uma meiguice vulgar.

São mansos que atacam sem dó nem piedade quando se sentem atacados, ou pior ainda, quando lhes atacam os seus. Ou quando lhes querem tirar o que de mais gostam. Incluo-os na ordem dos felinos. Feitos inclusive da mesma solidão. Sabem-na de cor, a essa solidão, e amam-na até às últimas consequências por saberem que é essa a sua condição, sem lamechices, e por valer a pena a sua vida feita de tanto suor e paixão.

Batalha após batalha lambem as feridas da alma sempre atentos; as batalhas estão à frente dos seus olhos - impossível a fuga ou o 'faz de conta que não vi'. Nada os detém, nada os perturba, são como troncos de árvores majestosas e é essa a sua postura. Oscilando entre esses dois estados, de árvore e de felino, cumprem com exactidão o papel que escolheram ou que lhes foi dado, em metamorfoses precisas e divinas. E entregam-se à tempestade, sem demoras. É vê-los a caminhar pela rua, há-os às dezenas. É fácil reconhecê-los pelo olhar, misto de força e tristeza, e pelas costas hirtas e a cabeça erguida, sem serem altivos.

Nada do que foi conquistado até hoje foi feito sem estes grandes homens e mulheres que discretamente trilham os seus caminhos e os daqueles que não têm coragem para o fazer. Sim, travam com frequência as batalhas dos outros, contudo, são muitas vezes apelidados de egoístas, mas são sempre os únicos a aparecer quando a hora é de luta. 'Dos fracos não reza a História' é muitas vezes mentira, estes Homens passam pelo tempo sempre anónimos e incompreendidos.

Não me questiono acerca do seu cansaço. Um guerreiro há-de ser sempre um guerreiro, sem descanso e sem sossego, mesmo que a vida se torne macia. Em silêncio, como a árvore. Em silêncio, como o felino. À espera da tempestade."

Eyes of China Blue














1,2,4-Rubens Nemitz Jr.; 3,5,6,7-Hannes Caspar; 8-Helga Kvam

Three Days Grace, Time of Dying por HomeXGnome

terça-feira, 17 de junho de 2008

2. Proscritos




Lara Jade Coton

Sad Song, Misha
"Sou a verdadeira proscrita, sem túnica ou letra escarlate.
Exibo em seu lugar,
o coração de quem sabe sê-lo.

Com os meus gestos consigo apenas o nada, que
humildemente carrego com carinho e guardo como tesouro.
O nada que acalento e mimo quase na perfeição.

Sou a banida e a enjeitada. E se ainda trago em mim o
pasmo de assim ser, não posso dizer que me faça
diferença ou que não esteja habituada.

Santa ou prostituta, na verdade sou sempre a primeira a
acreditar ser a última e sou, de facto, a última a ser a
primeira. Escandalosa ou discreta, desempenho todos os
papéis com a consciente noção de que é sempre o papel errado ou o papel que para mim nunca quis, mas consola-me saber que entre um e outro, é sempre o papel principal.

Consigo ser venerada a ponto de ser proscrita, a ponto de ser desprezada. Ironia é ainda crer que é qualidade ou magia esta minha dualidade.

Sem nome me movo. Tão pouco o lembro para me ser mais fácil obter meu próprio perdão.

Sem precisar de túnica ou letra escarlate, sou. Aquilo que sei que sou.

Pelos outros, a escondida.

Proscritamente inteira em mim.

Sem pecado e sem redenção.

Sou Trovão, Mente Perfeita.
"
Eyes of China Blue

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Aparências



"Eu (Protágoras) digo que a verdade é tal como escrevi, que cada um de nós é a medida do que é e do que não é; e que há uma imensa diferença entre um e outro indivíduo, por isso, precisamente, é que são e parecem ser certas coisas para um, e para outro, outras."
Platão


"É certo que quase nada vale por aquilo que parece. E, no entanto, talvez o que pareça valha sobre o quase-nada que lhe falta para ser tudo aquilo que não é."
Eduardo Sá

Hank van Rensbergen


Doll Face, Andy Huang
CONCLUSÃO:

"A melhor maneira de lidar com os outros é tomá-los por aquilo que eles acham que são e deixá-los em paz."
António Lobo Antunes

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Dia Mundial do Livro

Segundo uma velha tradição catalã, a 23 de Abril, o dia de S. Jorge, os cavaleiros ofereciam às suas damas uma rosa, a chamada rosa vermelha de S. Jorge, recebendo em troca um livro. Uma rosa como símbolo de amor, um livro como símbolo de cultura. Em 1926, Espanha instaurou o dia 23 de Abril como Dia do Livro pois esta data coincide com a morte de Miguel de Cervantes, imitando a Inglaterra que já o celebrava por coincidir com a morte de William Shakespeare. Em 1995, a conferência geral da UNESCO considerou o livro como sendo historicamente o instrumento mais potente de difusão do conhecimento, proclamando esta mesma data como o "Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor".



"Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso é, indubitavelmente o livro. Os outros são extensões do seu corpo. O microscópio e o telescópio são extensões da vista; o telefone é o prolongamento da voz; seguem-se o arado e a espada, extensões do seu braço. Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação. Em César e Cleópatra de Shaw, quando se fala da biblioteca de Alexandria, diz-se que ela é a memória da humanidade. O livro é isso e também algo mais: a imaginação. Pois o que é o nosso passado senão uma série de sonhos? Que diferença pode haver entre recordar sonhos e recordar o passado? Tal é a função que o livro realiza."
Jorge Luís Borges


Noah Wil

"Nos livros está tudo o que existe, muitas vezes em cores mais autênticas, e sem a dor mais verídica de tudo que realmente existe. Entre a vida e os livros, meu filho, escolhe os livros."
José Eduardo Agualusa
, O vendedor de passados

Ler devia ser proibido


Dead Poets Society, Peter Weir, 1989

sábado, 19 de abril de 2008

Centenários




Love rocks, Nikolaj Grandjean
"(...)Não me lembro da cor dos olhos
quando olhava

os olhos das raparigas lá de casa
mas sei que era neles que se acendia
o sol

ou se agitava a superfície dos lagos

do jardim com lagos
que me levavam de mãos dadas

as raparigas lá de casa

que tinham namorados e com eles

traíam

a nossa indefinível cumplicidade.


Eu perdoava sempre e ainda perdoo

às raparigas lá de casa

porque sabia e sei que apenas o faziam

por ser esse o lado mau
da sua inexplicável bondade

o vício da virtude da sua imensa ternura

da ternura inefável do meu primeiro amor

do meu amor pelas raparigas lá de casa."

Emanuel Félix

quinta-feira, 20 de março de 2008

O cheiro dos outros

"Sou como o escravo, o engastulado do cheiro.Tudo é cheiro. É o cheiro que guia, repele, atraí, repugna, o cheiro é o condutor das almas.(...) Os carácteres dos homens são feitos de essências.(...)Nós não conhecemos a própria alma porque não sentimos o nosso cheiro, enigmas para nós mesmos indecifráveis. O cheiro dos outros fica, impera. De volta de um cheiro amado, é cheirar as mãos e sentir o olor do amor como um velador nos próprios dedos.(...) Vou em busca do meu perfume, do perfume que amo, do corpo dessa alma."
João do Rio, A Mais Estranha Moléstia


Katia Chausheva

"Exactamente às nove horas de ontem, no silêncio da noite, espalhei o meu e o teu cheiro pela cidade. A brisa agradeceu. E as árvores curvaram-se para nos ver passar."
Simoa


Katia Chausheva

"Ela tem em si o perfume insusbtituível do poder dele sobre ela, da sua deserção do amor que tinha por ela, da passagem desse amor a uma atenção apenas, ela tem em si o odor do fim do amor."
Marguerite Duras, Dez Horas e Meia Numa Noite de Verão

Planters Peanut Perfum

O teu cheiro



Katia Chausheva

A Sad Song
"Talvez possa falar da tua essência. É certo que desconheço de que é feita. No entanto,conheço-te o cheiro.

É esse teu cheiro, ainda misterioso e inacabado, que me traz inteira das coisas quando a cidade dorme e me deito em silêncio no teu peito.

É esse teu cheiro que regressa comigo de uma qualquer infância ou do mundo dos brinquedos onde tantas vezes nos encontramos.

É esse teu cheiro que me despe de mim e de tudo o que penso quando me encosto ao teu corpo macio e fecho os olhos.

Talvez o teu cheiro me tenha mesmo acompanhado nas minhas viagens interiores, ou quando de mãos dadas olhámos serras.

Talvez tenha estado a meu lado durante a chuva, durante a lua, durante aquele silêncio doce que aumenta paredes e cores de flores já murchas.

Não sei. Tu e o teu cheiro existem-me nos ventos e nas sombras e nas areias.
Tu e o teu cheiro existem-me, sem tu e eu o sabermos, sem tu e eu o querermos dizer, nas margens das minhas mãos e do meu corpo.

Não sei quem és. Duvido-te. Nada sei da tua essência. Mas gosto-te porque te conheço o cheiro.

E será o teu cheiro a dizer-me quem és."
Eyes of China Blue

quarta-feira, 19 de março de 2008

Negações


Lylia Corneli

"Nego-me a viver num mundo ordinário como uma mulher ordinária.
A estabelecer relações ordinárias. Necessito do êxtase. Sou uma mulher neurótica, no sentido de que vivo no meu mundo. Não me adaptarei ao mundo. Adapto-me a mim mesma."
Anais Nin

La Foule, Edith Piaf

segunda-feira, 10 de março de 2008

Três dias depois

"Não sou acanhada
nem sou de mesuras,

não temo as alturas
nem facas afiadas

e pego em enxadas
como qualquer matula
.
Não tenho tremuras
a palavras duras

e resisto bem à pancada.

Sou da mulherada
da raça mais pura,

sou de ternura muito abastada."

Isabel Ruth



Yulia Schevchenko

Violence Domestique

sexta-feira, 7 de março de 2008

As pessoas boazinhas

"Ele era sacana, mas um sacana da pior espécie: nunca se chegava a descobrir o sacana que ele era."

Prakash Sonawane

"
As pessoas boazinhas incomodam-me. Arrepiam-me. Assustam-me. Metem-me medo.
Não estou a falar de pessoas genuinamente amáveis, educadas e de boa índole, que também têm os seus maus momentos, graças a Deus, o que as torna mais humanas. Não. Estou a falar daquelas criaturas aparentemente muito amáveis, aparentemente muito educadas, aparentemente de muito boa índole. Aparentemente tudo muito bom e tudo perfeito.
As pessoas boazinhas são normalmente pessoas de aparência frágil e que se fazem passar por criaturas frágeis que precisam sempre de apoio e protecção.
A geometria do corpo e a postura encobrem a bestialidade do seu interior. São dóceis e meladas como só elas sabem ser. Tocam muito, abraçam muito, amam toda a gente, fazem imensas coisas boas, são tidas e respeitadas por toda a gente e nunca ninguém teve algo que lhes apontar. Trazem escondida no rosto, uma linha equatorial quase imperceptível; para os mais perspicazes será a linha que lhes dirá que o olhar e o sorriso não estão em sintonia na expressão.
As pessoas boazinhas passam pela vida em segredo, quase nunca são descobertas porque ninguém está para se maçar a fazer análises microscópicas de palavras, gestos e atitudes. Vão destruindo tudo à sua volta, de mansinho e em silêncio, sem que alguém se aperceba.
Em caso de se sentirem forçadas a uma abordagem mais directa, têm sempre alibi e não há nunca testemunhas que possam repetir o que foi dito. Farão qualquer coisa, e muito bem feita, para que o seu pequeno reinado não termine nunca. São por isso capazes das piores patifarias, mas não se enganem, patifarias essas acompanhadas dos maiores gestos de bondade para que, em caso de possíveis interrogações, a dúvida seja imediatamente dissipada.
As pessoas que são gente boa e de bom coração que me perdoem. Eu falo de pessoas boazinhas. E, para vos ser franca, é por isso que gosto de filhos da puta. Não o filho da puta rude, que manda bocas, que dá opinião (sempre destrutiva) quando ninguém lhe pergunta nada, e que está sempre a criticar. Esse não é um filho da puta; é um cobarde a tentar desviar atenções de um possível e enorme complexo de inferioridade.
Estou a falar do verdadeiro filho da puta. Aquele gajo que diz o que pensa quando lhe é perguntado e a olhar-nos de frente e nos olhos, que não se inibe face à verdade, que se conhece, se assume e que é o primeiro a avisar os outros de que é isso que ele é na realidade.
Ninguém lhes quer bem, estão na boca de toda a gente e sempre na ordem do dia, mas isso não os impede de travarem as suas batalhas sózinhos, sem nunca se mostrarem frágeis ou a precisarem de protecção para conseguir os seus intentos. São igualmente capazes das piores patifarias, são os primeiros a dizer que o fizeram, e inclusivé antes de o fazer, avisam as pessoas boazinhas : Vou foder o gajo! que por acaso o escutam e que sempre, sempre se esquecem de avisar o gajo que vai ser fodido (de quem são muito amigas) , mas que são as primeiras a tocar à campainha do coçado para lhe lamber as feridas...
Os filhos da puta, os verdadeiros, são os únicos que nos deixam fugir deles enquanto podemos. Essa liberdade é a maior dádiva que qualquer ser humano em consciência pode conceder a um outro: a hipótese da fuga.
A estes últimos, aqui lhes deixo o meu bem-haja.
Às pessoas boazinhas... que lambam os beiços. A alma é como o cabelo e as árvores; volta a crescer. Mas não se esqueçam: um dia é da caça, outro é do caçador. Até um dia destes."
Eyes of China Blue

I'll kill her, Sokko

domingo, 2 de março de 2008

Sonhos de menina


Roxanne Monsanto

"Um dia, devia ter uns cinco ou seis anos, uma velha tia perguntou-me:
O que queres ser quando fores grande?
O céu, respondi."
Faíza Hayat

Sonhos de menino


Roxanne Monsanto

"Quando eu tiver onze anos, disse o menino pequenino, acabado de acordar fora de horas, lindo e mal-disposto, a espreguiçar-se à meia-noite, vou ser um animal."

Cinema Paradiso, Giuseppe Tornatore, 1988

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

2. A importância dos sentidos


Devidas Dharmadhikari
"Creio no Mundo como num malmequer,
porque o vejo. Mas não penso nele
porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(pensar é estar doente dos olhos)
mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
mas porque a amo, e amo-a por isso,
porque quem ama nunca sabe o que ama
nem sabe porque ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
e a única inocência é não pensar..."

Alberto Caeiro

"(...)
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sózinhos:
As coisas não têm significação: têm existência.
As coisas são o único sentido oculto das coisas."
Alberto Caeiro