sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Anemias ou A Vitória da Persistência

Eyes of China Blue em PhotoFunia

"Sou do tempo em que se lia O Meu Pé de Laranja Lima como leitura obrigatória nas escolas preparatórias, e nos atiravam com Os Esteiros ou O Diário de Anne Frank ainda mal tínhamos caído do colo de toda a gente.

Todo o meu corpo cresceu desde então, mas a minha alma continua do tamanho dos meus olhos quando contemplavam altares em dia de casamento ou tigelas de marmelada em alto de frigoríficos. Ou árvores escondidas por vidros embaciados, da cevada acabada de fazer em manhãs de Inverno. Ou muito simplesmente, berlindes às cores espreitando ao fundo das mãos dos putos. Mãos. As mãos do meu pai. As mãos do meu avô. A minha imagem reflectida ao espelho - brincos de princesa rubros e generosos enfeitando-me as orelhas e o negro do cabelo - descascando papel de chumbo em louceiros seculares, de tanta a inocência.
Fui observando a vida como se os meus olhos fossem feitos da paciência do açúcar em banho quente de água, assim, como se fossem rebuçados da Régua, embrulhados por Deus em papel vegetal, e desembrulhados por segundos e terceiros para serem maiores o ritual e o espanto. Isso e a lei da gravidade aplicada à água, à minha água, à água dos meus olhos.
Eu, aquela que gosta de saber e de não saber o porquê de todas as coisas, perpetuando fés e mistérios ou fugindo da inevitabilidade fatal do pecado original, nunca soube o que eram frieiras. Ainda hoje assaltam-me essa e outras dúvidas, de igual importância. Por exemplo, não sei se recomeço a vida, continuamente, ou se na verdade me engano e o que vivo são retrospectivas, umas reais outras imaginárias, pelos cantos dos cafés, mesas de esplanada, paragens de autocarro ou filas de supermercado, fazendo questão de as espalhar pelos cantos desta cidade, meu único roteiro de alegrias e de dores. Enquanto me convenço e até mesmo acredito que renasço mais uma vez. E uma outra vez ainda.

Mas não importa. Bem vistas as coisas, a única certeza que tenho, é que há em mim um cansaço que não me deixa morrer.

E isso basta-me para ser feliz."
Eyes of China Blue


Desert, Emilie Simon

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