terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

O perigo da inocência


"(...) Que pensará o meu muro da minha sombra ?(...)

Alberto Caeiro


"Conheci um ser humano belíssimo de uma inocência extraordinária. Não via o mundo porque simplesmente o acreditava de uma forma bela e extraordinária como ele próprio. E o pouco que via, recusava-se a vê-lo. Estar-lhe perto era acreditar novamente em todas as coisas que vamos perdendo ao longo da vida, ou que vamos guardando para nós e para aqueles que deixamos que permaneçam a nosso lado. Sabia bem acreditar novamente nessa mentira feita assim verdade por esta criatura extraordinária. Todas as tardes, depois da ronda das flores, eu voava para junto desta criatura, à espera de poder descansar de todos os voos, de todas as fugas, de todos os perigos. Ali sentia-me segura. Enquanto eu descansava fazia-me perguntas acerca do mundo, do mundo que se recusava a ver, do mundo que tinha imaginado na sua inocência. Nunca foi minha intenção transformar o seu mundo ou fazê-lo acreditar num outro mundo que não o dele. Até porque eu precisava que assim fosse. A vida ser-me-ia breve e toda aquela fantasia enchia de paz o meu corpo velho e cansado. Nunca me ocorre mentir-lhe ou não lhe contar a verdade. Ele enchia os olhos de espanto e repetia inúmeras vezes o quanto eu me enganava. Não compreendia o que eu via, e quando eu lhe dizia que não era o que eu via mas como o mundo era na realidade, os seus olhos enchiam-se mais de espanto ainda. E assim passávamos as tardes e assim voltava eu para ele todas as tardes, depois das flores. Fizemos isto durante muitos dias, passámos juntos por algumas estações do ano.
Como disse, nunca foi minha intenção menti-lhe. E de tanta verdade que lhe fui dizendo, passou de facto a ver. A imagem deste mundo distorcendo a minha imagem. O seu mundo continuou intacto. Intacta não fiquei eu.

Deixei-me dessas tardes depois das flores, escondi-me num buraco qualquer, num covil, numa toca, num casulo, não sei bem. Só sei que me escondi, só e sem palavras. É lá que ainda estou, é lá que sempre estarei, à espera que me nasçam asas de novo.
Aquelas que perdi por ter dito a verdade."
Eyes of China Blue


"(...) Que as coisas sejam realmente o que parecem ser
E que não haja nada para compreender. (...)"
Alberto Caeiro


La llorona, Chavela Vargas

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