domingo, 16 de março de 2008

Leituras: Ninguém escreve ao Coronel

O coronel e sua mulher perderam o filho e recebem como herança um valioso galo de combate que é a sua única fonte de rendimento mas que vai sendo impossível sustentar. É em pobreza envergonhada que estas duas pessoas vão esperando, ao longo de 15 anos, a chegada de uma carta: a pensão prometida pelo governo; carta essa que nunca chega. É sobre a paciência e sua deterioração, a espera do cumprir de uma promessa que nunca o é, o ainda acreditar e a consciência de que a realidade é vivida na ilusão. Consequentemente, é o colapso do espírito humano e a derrota de uma esperança prolongada, a desilusão e a raiva que fazem com que uma palavra, só ao fim de 75 anos, seja proferida.

"(...)
- Responde.
O coronel não soube se tinha ouvido esta palavra antes ou depois de adormecer. Já nascia a manhã. A janela recortava-se na claridade verde do domingo. Pensou que estava com febre. Ardiam-lhe os olhos e teve de fazer um grande esforço para recuperar a lucidez.
- O que se pode fazer se não se puder vender nada - repetiu a mulher.
- Então já será 20 de Janeiro - respondeu o coronel, perfeitamente consciente - os 20% pagam-nos nessa mesma tarde.
- Se o galo ganhar - insistiu a mulher - mas se perder? Não te passou pela cabeça que o galo pode perder?
- É um galo que não pode perder.
- Mas supõe que perde.
- Ainda faltam 45 dias para começarmos a pensar nisso - replicou o coronel.
A mulher ficou desesperada.
- E entretanto o que comemos? - perguntou, e agarrou o coronel pelas bandas do casaco do pijama. Sacudiu-o com energia.
- Diz lá o que vamos comer.
O coronel precisou de 75 anos - os 75 anos da sua vida, minuto a minuto - para chegar a este instante. Sentiu-se puro, explícito, invencível, no momento de responder:
- Merda."
Gabriel Garcia Márquez, Ninguém Escreve ao Coronel

Sem comentários:

Enviar um comentário